sábado, 30 de abril de 2011

As Lições de uma escola: Uma ponte para muito longe...

Não cobiço nem disputo os teus olhos
não estou sequer à espera que me deixes ver através dos teus olhos
nem sei tampouco se quero ver o que vêem e do modo como vêem os teus olhos.
Nada do que possas ver me levará a ver e a pensar contigo
se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo.
Não me digas como se caminha e por onde é o caminho
deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser.
Se o caminho dos teus passos estiver iluminado
pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias
mesmo que tu me percas e eu te perca
algures na caminhada certamente nos reencontraremos.
Não me expliques como deverei ser
quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre
no espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas
semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas.
Não me prendas as mãos.
Não faças delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi.
Deixa-me arriscar o molde talvez incerto
deixa-me arriscar o barro talvez impróprio
na oficina onde ganham forma e paixão
todos os sonhos que antecipam o futuro.
E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei
nem queiras que eu saiba o que eu ainda não sou capaz de interrogar.
Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta
e com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos
ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida.

Vemos para fora e vemos para dentro.
Fora, vemos apenas o que de efêmero se vai oferecendo ao horizonte dos nossos olhos. Dentro, tendemos a ver o que não existe, freqüentemente, o que desejaríamos que existisse...
Mas sendo embora aquele que, por inventar o que não existe, antecipa e germina o futuro.

                                                                                           Ademar Ferreira dos Santos

eu e ela


ela fala
eu canto
ela é roupa
eu livro
ela é fase
eu lua
ela a cólera
eu o riso
ela impõe
eu sonho
ela é máscara
eu sou nua
ela olha
eu vejo
ela esta
eu sou

segunda-feira, 25 de abril de 2011

TELEVISÃO, JANELA DE VER O MUNDO


 
Em um ensaio publicado recentemente na revista Veja, Roberto Pompeu de Toledo chamou a atenção para o espaço cada vez mais onipresente ocupado pela televisão em nossas vidas.
O televisor deixou de ser um simples aparelho doméstico, esquecido num canto da sala, para ocupar o centro das nossas vidas.
O cronista Stanislaw Ponte Preta cunhou nos anos 60 a frase famosa sobre a televisão (não, não foi Fellini quem disse): Televisão é uma máquina de fazer doido.
O idioma alemão tem uma forma filosófica para denominar o aparelho de televisão, bem diferente dos demais idiomas ocidentais.
Na língua de Goethe e Schiller, o televisor é chamado de fernsehen, ou, literalmente, janela de ver.
Na década de 70, o intelectual francês Guy Debord chamou a atenção para a crescente transformação da sociedade em espetáculo, um fenômeno que passaria a ser fartamente explorado pela mídia de massa em décadas posteriores.
A crítica de Debord saiu no livro “A Sociedade do Espetáculo” e foi imediatamente absorvida por vários teóricos em diversos países.
No Brasil, um trabalho recém lançado, de autoria do jornalista José Arbex Jr., denuncia a estratégia dos mass media em utilizar a notícia como espetáculo.
No livro Showrnalismo, Arbex deixa claro que o interesse da mídia recai fundamentalmente nos assuntos com conotações de espetáculo.
No ensaio “Existe Vida Fora da TV?”, incluído no livro “A Saga dos Cães Perdidos”, o professor Ciro Marcondes Filho traça um vigoroso painel do papel da televisão contemporânea.
Ciro demonstra que a televisão apropriou-se das técnicas de cinema (angulação, travellings, zooms), combinando-as com uma linguagem jornalística visando transformar a notícia em show, em espetáculo.
A revista Cult publicou em seu número 62 uma ampla reportagem cujo tema é o telejornalismo produzido pela televisão brasileira nos últimos 10 anos.
A reportagem, intitulada “Telejornalismo: a informação em pedaços”, mostra como a televisão brasileira tem segmentado a notícia, oferecendo-a em fragmentos a uma grande massa de telespectadores, procurando atingir um público cada vez maior.
            Fragmentação, descontextualização e velocidade são termos que se aplicam de forma contudente à televisão contemporânea. Televisão não foi feita para nos fazer pensar. A rapidez com que as informações são transmitidas não deixa chance para qualquer tipo de reflexão. Essa característica do meio TV recebeu uma crítica ácida do intelectual austríaco Karl Popper.
Popper alerta para os riscos que a televisão pode trazer à democracia, uma vez que impede o desenvolvimento da reflexão, já que tudo se dá de forma veloz, não permitindo a assimilação das informações e sua digestão crítica.,
A televisão brasileira especializou-se num tipo de programação escatológica: quanto mais violência, melhor, quanto mais grotesco, melhor. De tal modo que o tema mereceu um tratamento crítico por parte do professor Muniz Sodré.
Em seu livro “O Império do Grotesco”, Sodré elabora um vasto painel mostrando como o culto ao grotesco tem sido amplamente explorado pela televisão ao longo das últimas décadas.
Em entrevista concedida à revista Imprensa, edição 177, a repórter Neide Duarte critica a linguagem dos telejornais. Para Neide, subestima-se o telespectador, atribui-se muita importância à imagem, em detrimento do bom texto.
Eu não acredito nesta história de que uma imagem vale mais que mil palavras. Não tem nada a ver. É justamente a palavra que faz a diferença. Este tipo de texto pode ser usado em qualquer matéria, por menor que ela seja. Tem que buscar a palavra exata, a melhor palavra.
Optei por um mosaico de idéias e informações para abordar, brevemente, o tema televisão, porque é assim que esse meio tem apresentado a informação a uma grande massa da população.  Não que esses atributos sejam exclusivos dessa mídia, a fragmentação da informação é uma das marcas da contemporaneidade, da chamada cultura de massa. Mas talvez nenhum outro meio tem apelado de forma tão incisiva para a espetacularização da notícia quanto a televisão, exatamente por deter os atributos da imagem em movimento, ocupando no imaginário das pessoas um espaço que antes cabia ao cinema.
As emissoras de TV, seja uma CNN, uma Globo ou uma Al Jazeera, especializaram-se em forjar emoção através do recorte da realidade, particularizando o fato mais apelativo e mais propenso a agradar um público sedento por fait-divers. Técnicas de angulação e edições cirúrgicas têm garantido a uma grande massa de pessoas doses generosas de um espetáculo renovado diariamente, entretenimento passageiro, emoção efêmera. Com a palavra, Ciro Marcondes Filho:
A audiência de televisão é uma experiência diária de entropia: quantidades imensas de trabalho , material, montagens, roupagens, cenários são diariamente reduzidos a pó na memória do telespectador.
Uma máquina incessante de fazer o nada.

De Paulo Lima

Minha turma!

Ah....essa turma é um barato!
Não tem um dia que eu passe sem dar minhas gargalhadas com essa galera!
Futuros Pedagogos desse Brasil!!!


Detalhe que só tem 2 rapazes na turma. Como eles aguentam, hein?!rsrs

Ele vive!!!


terça-feira, 19 de abril de 2011

Sobre a escola, por José Pacheco

Aprender a Aprender

Você é aluno? Ex-aluno? Ah... você não pode deixar de investir um tempinho para conhecer essas duas escolas! Uma em Portugal e outra aqui mesmo no Brasil.
O que elas tem em comum?
Você já sonhou com uma escola assim?
Deixe seu recado!
Pense....deguste...


segunda-feira, 11 de abril de 2011

A escola que eu sempre sonhei...


Rubem Alves conta como se apaixonou pela escola da ponte, em Portugal, um lugar único, onde alunos e professores convivem como amigos na fascinante experiência da descoberta. o escritor e educador - que estará no VII Congresso e feira de Educação Saber 2003 - fala sobre esse arrebatamento, num texto especial para educação

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Vou contar um caso de amor. Amor à primeira vista. Eu me apaixonei pela escola da ponte. Bastou vê-la para que um passado reverberasse dentro de mim não tenho memórias dolorosas do grupo escolar. As coisas a serem aprendidas eram fáceis e eu as aprendia sem esforço. Mas minha efervescência intelectual - pois as crianças também têm efervescências intelectuais - estava em outro lugar: no mundo que começava quando eu saía da escola.
Eu me levantava às 5h e me punha a andar pela casa fazendo barulho. Queria que os adultos dorminhocos despertassem do seu sono para o mundo maravilhoso que aparecia com a luz do dia. Minha curiosidade me levou a desmontar o relógio de pulso de minha mãe, o único que ela tinha. Queria saber como ele funcionava, aquela engrenagem fascinante. Infelizmente, não consegui montá-lo de novo.
No grupo escolar, nos ensinavam o que o programa mandava: o nome de serras, serra da Mata da Corda, do Espinhaço, da Bocaina; o nome de afluentes de rios distantes, dos quais a única coisa que aprendíamos eram... os nomes. O que me foi útil no exame de admissão, porque me perguntaram o nome da segunda maior ilha fluvial do mundo. Tupinambarana. Eu sabia o nome. Mas ainda hoje, nada sei sobre a ilha.
Era tempo da segunda guerra mundial. As batalhas entravam em nossa casa pelo rádio. "E Stalingrado continua a resistir." "Aviões aliados martelaram as posições nazistas no Vale do pó." meu pai afixou um mapa da Europa na parede e nele íamos seguindo os movimentos das tropas. A imaginação corria rapidamente e eu me sentia como um soldado na frente de batalha. O mapa, os países, o nome das cidades, dos rios, das montanhas - tudo estava vivo para mim.
Conto essas coisas da minha vida de menino para dizer que as crianças são curiosas naturalmente e têm o desejo de aprender. O seu interesse natural desaparece quando, nas escolas, a sua curiosidade é sufocada pelos programas impostos pela burocracia governamental. Pela minha vida tenho estado à procura da escola que daria asas à curiosidade do menino que fui. Pois, de repente, sem que eu esperasse, eu me encontrei com a escola dos meus sonhos. E me apaixonei.

Novas Formas de ver


Tudo começou em 2000, via internet. Um desconhecido de Portugal, Ademar Ferreira dos santos. Uma brasileira lhe havia dado um livrinho meu, Estórias de Quem Gosta de Ensinar. Ele gostou. Sem nos conhecermos pessoalmente, nos descobrimos amigos. Ele me convidou para ir a Portugal e falar aos professores da universidade de Braga e adolescentes de uma escola secundária.
Fui e fiz. Foi bom. Aí, numa manha, ele me disse: "vou levar-te a conhecer uma escola diferente.""Diferente como?", perguntei. "Não é possível dizer-te. tu verás." chegamos à escola. Na sua frente havia um pátio arborizado. Lá estava o diretor, professor José Pacheco. Mais tarde, aprendi que ele se recusa a ser chamado de diretor, por razões que explicarei mais tarde.
Minha expectativa era que o diretor, por um mínimo dever de cortesia, haveria de levar-me a conhecer a escola. Homem de poucas palavras, trocamos meia dúzia de banalidades. Vinha passando à nossa frente uma menina de uns 9 anos. Ele a chamou e disse: "Tu podes mostrar e explicar a nossa escola ao nosso visitante?" "Pois, pois", respondeu a menina, sem mostrar nenhuma surpresa. Ato contínuo, ele me abandonou e fiquei eu à mercê da menina.

Os primeiros sustos


Eu nunca tinha tido experiência que um diretor entregasse a uma aluna, menina de 9 anos, a tarefa de mostrar e explicar a sua escola a um educador estrangeiro.
A menina não se fez de rogada. Encaminhou-se resolutamente na direção da porta da escola e eu, obedientemente, a segui. Chegando à porta, ela parou, voltou-se para mim e disse em voz resoluta e confiante: "para entender a nossa escola, o senhor terá de se esquecer de tudo o que o senhor sabe sobre escolas. Não temos turmas, não temos alunos separados por classes, nossos professores não dão aulas com giz e lousa, não temos campainhas separando o tempo, não temos provas e notas."
Foi o segundo susto. As palavras da menina produziram um vazio na minha cabeça. Porque as escolas que conheço, mesmo as mais experimentais e avançadas, têm professores dando aulas, têm turmas, têm salas de aula que separam as crianças, têm provas e testes, têm notas e boletins para o controle dos pais.

Professores aprendizes


Perguntei: "E como é que vocês aprendem ?” “Ela me respondeu: “Formamos um pequeno grupo de seis pessoas em torno de um tema de interesse comum. Convidamos um professor para ser nosso assessor. Ele nos ajuda com informações bibliográficas e de internet. Estabelecemos, de comum acordo, um programa de trabalho de duas semanas. Durante esse tempo, lemos e pesquisamos. Ao cabo de duas semanas, nos reunimos para avaliar o que aprendemos e o que deixamos de aprender.”
"Percebi logo que naquela escola não podia haver livros-texto. Livros-texto são onde se encontram os saberes que, por escolha e determinação de uma instância burocrática superior, devem ser aprendidos pelos alunos. O conjunto desses saberes se denomina "programa". Mas acontece que a curiosidade não segue os caminhos determinados pela burocracia.
Sem livros-texto, as crianças têm de aprender a procurar os saberes necessários à compreensão do "tema de interesse comum". E os professores deixam de ser aqueles que sabem os saberes prescritos pelos programas. Eles se encontram permanentemente em suspenso ante o inesperado dos interesses das crianças. Os professores não são aqueles que sabem os saberes. São aqueles que sabem encontrar caminhos para os saberes. de qualquer forma, os saberes já se encontram em livros, bibliotecas, enciclopédias, internet. Acresce-se a isso o fato de que, hoje, os saberes se tornam rapidamente obsoletos.
Se os alunos tiverem os mapas e souberem encontrar o caminho, eles terão sempre condições de descobrir o que sua curiosidade pede. E os professores, por não saberem de antemão o que as crianças querem saber, têm de se tornar aprendizes junto às crianças. O tal "programa de trabalho de duas semanas", de que falou a menina, era para os professores também. Eles ensinam o aprender aprendendo junto. O que é muito mais divertido do que ficar, todos os anos, repetindo os mesmos saberes imobilizados pelos programas. Ficar a repetir o que se sabe, ano após ano, é, sem dúvida, uma prática emburrecedora.

Dentro da escola


Andamos um pouco e a menina abriu a porta da escola. Era uma grande sala, com muitas mesinhas, crianças pequenas, crianças grandes, algumas com síndrome de Down, todas juntas no mesmo espaço. Cada uma fazendo a sua coisa. Estantes com livros. Vários computadores. Algumas crianças lendo ou escrevendo. Outras consultando livros e a internet. Algumas professoras assentadas às mesinhas junto das crianças. Ninguém falava alto. Só sussurros. E ouvia-se, baixinho, música clássica.
Numa parede, em letras grandes, estavam várias frases relativas ao descobrimento do Brasil. Era o ano em que se comemoravam os cinco séculos da descoberta. "Que são essas frases?", perguntei. "Os miúdos [crianças] estão a aprender a ler. aqui não aprendemos nem letras, nem sílabas. Só aprendemos totalidades. Mas temos de aprender a ordem alfabética para consultar o dicionário." Outro susto: aprender a consultar o dicionário tão cedo?

Mistérios do dicionário


Ao nosso lado havia uma delas consultava um dicionário. Ajoelhei-me ao seu lado, para que nossos olhos estivessem no mesmo nível, e perguntei: "Tu estás a consultar o dicionário?" "Sim", ela me respondeu. "Procuras uma palavra que não conheces?" "Não, conheço a palavra." Eu não entendi e perguntei de novo: "Mas se conheces a palavra por que a procuras no dicionário?" Aí ela me deu uma resposta que me produziu outro susto. "É que estou a produzir um texto para os miúdos e usei uma palavra que, creio, eles não conhecem. Estou, assim, a preparar um pequeno dicionário que colocarei ao pé da página do meu texto para que entendam o que escrevi, posto que ainda não podem consultar o dicionário por não haverem ainda aprendido a ordem alfabética."
Fiquei assombrado. Aquela menina tinha clara consciência dos limites dos conhecimentos dos "miúdos". ela escrevia pensando neles. Naquela idade, já era uma educadora.

Os quadros de ajuda


Para que aquela menina estivesse escrevendo um texto para as crianças era preciso que não houvesse paredes separando-a dos "miúdos", que eles ocupassem o mesmo espaço e existisse entre eles relações de comunicação, confiança e responsabilidade. O texto que ela escrevia não fora um "dever" que a professora lhe passara. Ela o escrevia a pedido dos alunos mais novos.
Essa rede livre de comunicação, responsabilidade e ajuda estava silenciosamente exibida em dois quadros afixados na parede. Num deles estava escrito preciso que me ajudem em, no outro, posso ajudar em. Qualquer aluno que esteja com um problema, antes de procurar a professora, escreve o seu pedido no primeiro quadro: "Preciso que me ajudem em regra de três", e assina o nome, Fátima, por exemplo. Aí, o Sérgio, passando pelo quadro, vê a mensagem da Fátima e pensa: "A Fátima não sabe regra de três. Eu sei. Vou ajudá-la." E isso acontece naturalmente, é parte do cotidiano da escola. Não é preciso pedir licença à professora e nem há hora certa para se fazer isso.
O segundo quadro é o contrário: quando um aluno se sente competente em um saber, ele o anuncia aos colegas e se coloca à disposição. A capacidade de ensinar um saber a alguém vale por uma avaliação. E é o aluno quem a faz. É ele que se sente competente. Assim vão eles praticando as virtudes de ensinar, de aprender e de se ajudarem uns aos outros.

O grande tribunal


Eu me encontrava num estado de acontecendo? Ninguém falando alto, nenhuma professora pedindo silêncio, todos trabalhando, a música clássica. Aquilo não podia ser toda a verdade. Deveria haver algo mais. Perguntei à menina: "Mas vocês não têm alunos agressivos, indisciplinados, que gritam e perturbam a ordem?" "Temos. Mas para isso temos o tribunal de alunos. Quando um menino ou uma menina se comporta de maneira a perturbar a ordem nos termos que nós mesmos estabelecemos, o tribunal entra em ação e providências disciplinares são tomadas."
"Que coisa maravilhosa", eu pensei. Uma escola onde os professores não são responsáveis pela disciplina. E nem o diretor é a instância punitiva última, para onde são enviados os desordeiros. É a comunidade das crianças que cuida disso. Professores e diretor podem, assim, se dedicar aos desafios prazerosos de aprender junto com os alunos.

O último julgamento


Voltei à Escola da Ponte em 2001. Perguntei sobre o tribunal. O professor José Pacheco contou-me que o tribunal não existia mais. Fora abolido pela assembléia. Percebeu-se que ele era uma instância de punição e não de recuperação. E passou a relatar-me o incidente que produzira a sua dissolução.
Um aluno violento fora levado ao tribunal para responder por uma agressão. A assembléia da escola nomeou, como de praxe, um advogado de acusação. O réu escolheu um colega para defendê-lo. A assembléia se reuniu para o julgamento.
"A acusação foi devastadora", disse-me o professor José Pacheco. "Reuniu as provas e estabeleceu de forma cabal a culpa do réu. Eu pensei: ele está perdido, não há saída. entrou em ação o advogado de defesa. Ele não negou o que fora apresentado pela acusação, nem apresentou fatos que minimizassem a culpa do réu, mas lembrou aos membros do tribunal que todos eles eram Cristãos, freqüentavam a missa e o catecismo. E que, na igreja, se ensinava que o amor nos leva a ajudar aqueles que estão em dificuldades. Concluiu: `Pois esse colega tem estado em dificuldades há muito tempo e todos sabíamos disso. E agora estamos prontos a puni-lo. antes que o tribunal dê a sentença, e em nome da nossa coerência, quero que respondamos o que fizemos para ajudá-lo.'"
Esse foi o fim do tribunal. No seu lugar estabeleceu-se uma comissão de ajuda. Hoje, na escola da ponte, quando algum aluno começa a apresentar problemas de comportamento, essa comissão se adianta e nomeia colegas para ajudá-lo, com a missão de estar sempre por perto do dito aluno. E, quando se percebe que ele vai fazer algo inadequado, os colegas entram em ação para tentar dissuadi-lo.

O direito à alegria


A menina continuou a me guiar. Chegamos a uma mesa onde estava trabalhando uma aluna com síndrome de Down. Vi garota e pensei sobre sua convivência mansa com os seus colegas. Senti que sua presença ali era algo normal e feliz na rede de relação de solidariedade e de aprendizado que constitui a escola. Aquela menina era parte dessa rede. Com algumas peculiaridades e limitações, é claro. Mas, como todos os outros, ela se dedicava a aprender.
Se me perguntarem se ela conseguia seguir o programa, eu responderia dizendo que não há um programa a ser seguido numa ordem certa e num mesmo ritmo. Cada criança é única, com seus próprios sonhos, ritmos e interesses. A escola não pode destruir essa criança para amoldá-la a uma "forma".
O objetivo da escola é criar um espaço em que cada criança possa pensar os seus sonhos e realizar aquilo que lhe é possível, no ritmo que lhe é possível. Pensei que, nas escolas da minha memória, é comum que a preocupação dominante dos professores seja dar o programa. É isso que a administração pede deles. Não é incomum que professores, em conversas, falem em que lugar da "corrida" dos programas eles se encontram. É compreensível. Como partes da máquina burocrática, eles perderam a liberdade e se esqueceram dos sonhos antigos.
A educação não tem como objetivo preparar os alunos para ingressar no mercado de trabalho. O objetivo é criar as condições possíveis para a experiência da alegria. Porque é para isso que vivemos. A escola deve ser um espaço em que isso acontece. Parte das potencialidades daquela menininha tem a ver com saber viver no mundo dos ditos "normais". E parte das potencialidades das crianças ditas "normais" tem a ver com saber conviver com crianças diferentes - e ajudá-las. Isso também é alegria. Esse aprendizado de solidariedade é mais importante do que qualquer conteúdo de programa.

Cada aluno é único


Pensei: o que são programas? Programas são uma organização lógica de saberes dispostos numa ordem linear e que devem ser aprendidos numa velocidade igual, como se todos estivessem numa linha de montagem de uma fábrica.
Sobre que pressupostos se constroem os programas? Bem, o primeiro costuma ser mais ou menos assim: "A aprendizagem se dá numa relação entre o saber, abstratamente definido, e a inteligência da criança. A mediação entre saberes e inteligência se dá pela didática. Se a aprendizagem não acontece, o problema se encontra ou na inteligência deficiente da criança ou numa didática inadequada."
Um segundo pressuposto prega que "todas as crianças são iguais". É só isso o que justifica que os mesmos saberes sejam dados a todas as crianças. mas isso é patentemente falso. os sonhos das crianças das praias de alagoas, das montanhas de minas gerais, da Amazônia, das favelas, dos condomínios ricos não são os mesmos. então, qual é o sentido instrumental dos saberes abstratos igualmente prescritos a todas as crianças pelos programas? Não admira que sejam logo esquecidos. Só realmente aprendemos aquilo que usamos.
"Todas as crianças têm o mesmo ritmo. Por isso as crianças têm de aprender no ritmo em que as aulas são dadas." Ah, o ritmo das aulas. Toca a campainha, é hora de pensar português. Toca a campainha, é hora de parar de pensar português e começar a pensar matemática. Toca a campainha, é hora de parar de pensar matemática e começar a pensar geografia. E assim por diante. O ritmo e a fragmentação das aulas estão em completo desacordo com tudo o que sabemos sobre o processo de pensamento. Não é possível dar ordens ao pensamento para que ele pare de pensar numa coisa numa certa hora e comece a pensar em outra.
Mas há ainda um quarto pressuposto: "A avaliação da aprendizagem se faz por meio de provas e testes e os seus resultados são expressos em números." Confesso ainda não ter compreendido a função pedagógica desse procedimento. Sobre isso há muito a ser escrito.

Grandes horizontes


Na Escola da Ponte não há programas. Isso não quer dizer que a aprendizagem aconteça ao sabor dos desejos das crianças. Imagine um homem do campo, que só conheça as comidas mais simples: polenta, feijão, abobrinha, picadinho de carne. Imagine que ele venha à cidade e seja levado por um amigo a um restaurante. "Que é que o senhor deseja?", lhe perguntaria o garçom. Ele certamente responderia falando de polenta, feijão, abobrinha, picadinho de carne, pois esse é o seu repertório de pratos. Aí, o amigo lhe diria: "Quero sugerir que você experimente uns pratos diferentes."
Assim acontece na relação entre professores e alunos. Os professores sabem mais. É por isso que são professores. E uma de suas tarefas é "seduzir" as crianças para coisas que elas ainda não experimentaram. Eles lhes apontam coisas que nunca viram e as introduzem num mundo desconhecido de arte, literatura, música, natureza, lugares, história, costumes, ciências, matemática. "A primeira tarefa da educação é ensinar a ver", dizia o filósofo Nietzsche. Não é obrigatório que elas gostem do que vêem. Mas é importante que seus horizontes se alarguem.

O direito de não ler


O dia na Escola da Ponte se inicia de uma forma inusitada. Cada criança se assenta onde quer e escreve numa folha de caderno o seu plano de trabalho para aquele dia. Esse plano de trabalho está ligado ao seu projeto de investigação. Ao final do dia, comparando o realizado com o planejado, ela poderá avaliar o quanto caminhou. Eu imagino que deveria ser mais ou menos assim que o trabalho acontecia nas oficinas artesanais e de arte do renascimento: os aprendizes trabalhavam num projeto artesanal, ou de escultura, pintura, e, vez por outra, o mestre aparecia para avaliar, corrigir, sugerir.
Andando na Escola da Ponte, encontro um cartaz cujo título era: Direitos e Deveres das crianças em relação aos livros. O primeiro direito me deu um susto tão grande que nem li os outros. Foi susto por ser inesperado. Mas foi um susto bom. Até ri. Dizia assim: "Toda criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta." Esse direito sempre me pareceu óbvio. Mas eu nunca o havia visto assim escrito de forma clara, numa escola, para que os alunos o lessem. As escolas da minha memória jamais fariam isso. Porque é parte do seu dever burocrático fazer com que as crianças leiam os livros de que não gostam.
Há professores que ensinam literatura para desenvolver uma postura crítica nos seus alunos. Mas esse não é o objetivo da literatura. Lê-se pelo prazer de ler. Por isso, refugo quando pessoas falam sobre a importância de desenvolver o hábito de leitura. Isso é o mesmo que dizer que é preciso desenvolver nos maridos o hábito de beijar a mulher. Hábitos são comportamentos automatizados que nada têm a ver com prazer. Lê-se pela mesma razão que se dá um beijo amoroso: porque é deleitoso, porque dá prazer ao corpo e alegria à alma.

As duas caixas


 Já resumi minha teoria de educação dizendo que o corpo carrega duas caixas. Uma delas é a "caixa de ferramentas", onde se encontram todos os saberes instrumentais, que nos ajudam a fazer coisas. Esses saberes nos dão os "meios para viver". Mas há também uma "caixa de brinquedos". Brinquedos não são ferramentas. Não servem para nada. Brincamos porque o brincar nos dá prazer. É nessa caixa que se encontram a poesia, a literatura, a pintura, os jogos amorosos, a contemplação da natureza. Esses saberes, que para nada servem, nos dão "razões para viver".
A "caixa de ferramentas" guarda muitos livros: manuais, listas telefônicas, livros de ciências. Na "caixa de brinquedos" estão os livros de literatura e poesia que devem ser lidos pelo prazer que nos dão. Obrigar uma criança ou um adolescente a ler um livro de que não gosta só tem um resultado: desenvolver o ódio pela leitura. É o que acontece com os jovens que, preparando-se para o vestibular, são obrigados a ler os "resumos". A receita certa para destruir o prazer da leitura é colocar um teste ao seu final para avaliar o aprendido. Ou pedir que se faça um fichamento do livro lido.

Leis e direitos


Numa parede da escola se encontravam as "leis". Mais importante que as leis era o fato de que elas tinham sido sugeridas e aprovadas pela assembléia de alunos. Aquele documento representava a vontade coletiva de crianças, professores e funcionários. Era o seu "pacto social" de convivência. Lembro-me de alguns itens. "Todas as pessoas têm o direito de dizer o que pensam sem medo." "Ninguém pode ser interrompido quando está falando." "Não se deve arrastar as cadeiras fazendo barulho."
O item que mais me comoveu e que é revelador da alma daquelas crianças foi esse: "Temos o direito de ouvir música enquanto trabalhamos, para pensar em silêncio." Entendi, então, a razão da música clássica que se ouvia baixinho.

Acho bem e acho mau


Ao final da minha caminhada inaugural pela Escola da Ponte, a menina me indicou um computador. "Nesse computador se encontram dois arquivos", ela explicou. "Um se chama acho bem, o outro, acho mal." Qualquer pessoa pode usar o computador para comunicar aos outros o que acha bem e o que acha mal. Um ninho de passarinho num galho de árvore, um ato do presidente da república, o aniversário de um colega, um livro divertido - tudo isso pode estar no acho bem. No acho mal, eu encontrei: "Acho mal que o Fernando fique a dar estalos na cara da Marcela." pensei logo: "Esse é candidato ao tribunal..."
As crianças haviam aprendido que há palavras grosseiras, chulas, que não devem ser usadas. No seu lugar usam-se outras palavras sinônimas. É o caso do verbo "cagar", que não deve ser usado em situação alguma. Mas pode-se usar o sinônimo "defecar" que, sem ser elegante, pelo menos não ofende. Pois uma menina escreveu: "Acho mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda cagada." Menina genial! Ela sabia que o dicionário estava errado. Cagar e defecar não são palavras sinônimas, muito embora o dicionário assim o declare. Se ela tivesse escrito "Acho mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda defecada", sua indignação teria perdido toda a força literária. Porque aquilo que os meninos faziam na tampa da privada não era defecar; era "cagar" mesmo, uma coisa chula e grosseira.

O todo e as partes


A menina já me havia informado do princípio central da pedagogia da Escola da Ponte, ao me explicar como os miúdos aprendiam a ler: "Aqui não aprendemos nem letras e nem sílabas. Só aprendemos totalidades." As disciplinas isoladas são o resultado da tendência de análise e especialização que caracterizam o desenvolvimento das ciências ocidentais. A nona sinfonia, de Beethoven, não é o conjunto de suas notas. Ela não se inicia
com notas e acordes. A totalidade vem primeiro e é só em relação a ela que as partes têm sentido. Assim é o corpo: uma entidade musical. Nenhuma de suas partes tem sentido em si mesma. É a melodia central do corpo que faz as partes dançarem. Mas os nossos jovens, diante do vestibular - e é preciso não esquecer que os programas das escolas se orientam no sentido de preparar para o vestibular -, trazem consigo as partes desmembradas de um corpo morto: uma soma enorme de informações que não formam um todo significativo. Física, química, biologia, história, geografia, literatura, como se relacionam? Fazem-se então esforços inúteis de interdisciplinaridade. Inúteis porque o todo não se constrói juntando-se as partes.

Brincar é coisa séria


A Escola da Ponte me mostrou um novo mundo em que crianças e adultos convivem como amigos na fascinante experiência de descoberta do mundo. Aprender é muito divertido. Cada objeto a ser aprendido é um brinquedo. Pensar é brincar com as coisas. Brincar é coisa séria. Assim, brincar é a coisa séria que é divertida.
Quando falo que me apaixonei pela Escola da Ponte, estou dizendo que amo aquelas crianças. Gosto delas. e elas também gostam de mim. Voltar à Escola da Ponte já está se tornando rotina. Quando lá chego, sou afogado por centenas de "beijinhos". Comove-me a amizade daquelas crianças. Sinto que o maior prêmio para um professor é quando os alunos se tornam amigos dele. Um verdadeiro professor nunca sofre de solidão.
Uma entrevistadora brasileira perguntou a uma menina: "Quem é Rubem Alves?" a menina respondeu: "É um velhinho que conta estórias." As crianças podem me chamar de velhinho. Não me importo. Mas somente elas.

*Rubem Alves é escritor, autor de dezenas de livros, entre eles A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir (Papirus, 120 págs., r$ 22), em que conta sua experiência na Escola da Ponte. Rubem Alves será um dos palestrantes do VII Congresso e Feira de Educação saber 2003, que acontece de 11 a 13 de setembro, no palácio das convenções do Anhembi, em São Paulo. Mais informações no site www.saber2003.com.br**os www.saber2003.com.br**os azulejos que ilustram esta matéria foram século XX (edições Inapa, 280 págs.) Leia a matéria na íntegra www.revistaeducacao.com.br/r_alves.php